Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Público, 2010-06-21 e recebido por e-mail do amigo ARS
Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.
Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência, urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de alimentos.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família. Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual, tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.
Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando já há muito foram dizimados pela praga da miséria.
Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.
E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.
Pedro Afonso
Médico psiquiatra
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4 comentários:
Caro João,
um grande médico que é acima de tudo um Grande Homem. A saúde mental dos Portugueses está ameaçada pelas dificuldades diárias que se impõem e a capacidade de com êxito conseguir responder a todas elas.
Sensibilizaram-me as preocupações deste médico que demonstra aqui coerência e humanidade.
Beijinhos,
Ana Martins
Ave Sem Asas
Subscrevo o que aqui li pois é o país real que temos.
Meu filho está nessas circunstâncias...32 anos e não consegue trabalho adequado ao seu estado psiquico...depois de ser um excelente aluno e nada conseguir na vida de trabalho...sente-se um "lixo". Neste momento está em voluntariado numa Instituição de Def.Mentais. Assim sendo, mesmo não ganhando um euro sequer...está a ser uma bela terapia para o estado de depressão profunda, em que se tem encontrado, já lá vão cerca de 7 a 10 anos.
Mas o que vale a esta família e a ele próprio, é que é um adulto decente no sentido de não ser um menino mimado como abaixo está descrito.
«vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária.»
Devemos isso à sua maneira de ser e à sua moral irrepreensível.
Aplaudo de pé tudo o que li e vou passar a seguir estas notícias com todo o afinco e amor pelo próximo.
Forte abraço
Mer
Querida Amiga Ana Martins,
A sociedade altera-se rapidamente, com o desfilar dos dias, e não há ensinamentos de hoje que tenham garantia de serem úteis amanhã. A nossa melhor formação terá de basear-se em princípios e valores consagrados pela experiência,
aliados à observação daquilo que ocorre à nossa volta para podermos escolher o caminho a seguir, o lugar onde pousar o pé no próximo passo.
As opiniões de psiquiatras, psicólogos, etc. são úteis como orientação, mas temos que ser nós a tomar as nossas decisões da forma mais esclarecida possível.
Hoje o homem tem que ser mais responsável do que era há séculos, altura em que aquilo que se aprendeu com os avós era ainda aplicável e útil. Hoje cada momento pode ser diferente do anterior e é preciso saber utilizar o livre-arbítrio.
Beijos
João
Do Miradouro
Mer,
Penso que estou a compreender a sua forma de encarar as realidades da vida moderna. Parece uma mentalidade evoluída e pragmática, ajustando o comportamento às realidades. Mas uma coisa é sobreviver no meio da tempestade outra coisa é contribuir para que a sociedade se torne mais humana e mais defensora dos valores éticos clássicos que foram aconselhados por todas as religiões e por todos os pedagogos.
Acima de tudo está o nosso bem-estar dentro de sãos princípios com civismo, isto é, respeitando os outros e considerando que cada um tem os mesmos direitos que nós pelo que temos o dever de os respeitar.
No blogue Sempre Jovens que, ao longo de 1.727 postas, tem muitos textos que apelam para a boa convivência entre as pessoas com benefício para todos.
Procuramos desempenhar o nosso papel para melhorar a sociedade, a humanidade. Apareça sempre que desejar e penso que não dará por perdido o tempo que nos dedicar.
Cumprimentos
João
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