István Mészáros *
transcrição de um trecho da entrevista de Eleonora Lucena
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Prof. István Mészáros
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"(...)Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo.
Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta
das ideias de Marx. Do seu ponto de vista, o marxismo está em expansão ou
não?
Você está certa. É preciso ser cuidadoso sobre conclusões apressadas
e definitivas em qualquer direção. Geralmente elas são geradas mais por desejos
do que por evidências históricas. O colapso do governo Gorbachev não resolveu
nenhum dos problemas em questão na URSS. A fantasiosa tese sem sentido do "fim
da história" de Fukuyama não faz a menor diferença.
Também não é possível descartar o neoliberalismo simplesmente pelo fato de
que suas ideias e políticas, promovidas com agressivo triunfalismo, não são
apenas perigosamente irracionais (haja visto sua atitude sobre a guerra), mas
são absurdas as suas defesas do devaneio do imperialismo liberal. Sob certas
condições, mesmo absurdos perigosos podem obter apoio massivo, como sabemos pela
história.
A verdadeira questão principal é quais são as forças subjacentes e
determinações que fazem o povo ir a becos sem saída em diferentes direções. A
mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, nas mesas de café da moda
(não para estudo, mas para mostrar tema de conversa) não significa que as ideias
marxistas estão agora avançando por todo o mundo. É inegável que o
aprofundamento da crise que vivenciamos hoje está gerando protestos por todo o
mundo.
Mas encontrar soluções sustentáveis para as causas que tendem a surgir em
todos os lugares requer a elaboração de estratégias apropriadas e também
correspondentes formas de organização que possam coincidir com a magnitude dos
problemas em jogo.
E o que dizer sobre as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais
adeptos?
Em certo sentido, elas estão inegavelmente ganhando mais
adeptos, mesmo que não seja no terreno das ideias conservadoras sustentáveis.
"Não mudar" é quase sempre muito mais fácil do que "mudar" uma forma
estabelecida de comportamento. É a situação histórica real que induz as pessoas
a irem numa direção em vez de outra. Mas a questão permanece: o curso adotado é
sustentável? Há uma conhecida lei da física, no terreno da eletricidade, que diz
que a corrente elétrica segue a linha da menor resistência.
Isso é verdadeiro também sobre a situação de muitos conflitos sociais que
decidem, mesmo que temporariamente, em que direção um problema deve ser
equacionado naquele momento dependendo da relação de forças (ou seja: a força de
resistência à situação atual) e da capacidade de realização de alternativas
adequadas. A viabilidade de longo prazo de um curso adotado em relação a outro
não é de forma alguma garantia de melhor sucesso. Muitas vezes o oposto é o
caso.
Na nossa situação histórica, as respostas viáveis de longo prazo podem
requerer incomparáveis maiores esforços do que tentar seguir o "curso que deu
certo no passado", em vez de encarar o desafio e o fardo de uma mudança
estrutural radical. Mas os problemas são enormes, e a interação de forças na
sociedade é sempre incomparavelmente mais complexa do que a direção da corrente
elétrica. Por isso, é muito duvidoso que o que "deu certo" na linha conservadora
da menor resistência pode funcionar no médio prazo, muito menos no longo prazo.
Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
Essa é
a questão mais importante em nosso período histórico em que crises se manifestam
em diferentes planos da nossa vida social. Se estamos preocupados em enfrentar
uma solução historicamente sustentável para nossos graves problemas, entender a
verdadeira natureza do debate das contradições é essencial. Conflitos e
antagonismos históricos são passíveis somente a soluções do tempo histórico. É
muito confuso falar de capitalismo como um sistema mundial.
O capitalismo abarca apenas um período do sistema do capital. Só ultimamente
é que constitui um sistema mundial de fato, para além da sustentabilidade do
próprio capitalismo. O capitalismo como um modo social de reprodução é
caracterizado pela extração predominantemente econômica da mais valia do
trabalho. Entretanto, há também outras formas de obter a acumulação do capital,
como a já conhecida extração política do trabalho excedente, como foi feito na
URSS e em outros lugares no passado.
Nesse sentido, é importante notar que a diferença fundamental entre as
tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado, pertencendo à normalidade
do capitalismo, e a crise estrutural do sistema do capital como um todo - que é
o que define o atual período histórico. Por isso tento sempre enfatizar que
nossa crise estrutural (que pode ser datada do final dos anos 1960 e se
aprofundando desde então) necessita de mudanças estruturais para uma solução
duradoura possível. E isso certamente não pode ser atingido com uma "linha de
menor resistência".
Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até
agora?
Como sabemos, o século 21 é ainda muito jovem e muitas surpresas
ainda estão por vir. Mas a figura política que teve o maior impacto na evolução
histórica do século 21 - um impacto que deve perdurar e ser estendido - foi o
presidente da Venezuela Hugo Chávez Frias, que morreu em março deste ano.
Claro, Fidel Castro também está muito ativo na primeira metade desta década,
mas as raízes de seu grande impacto histórico estão nos anos 1950. Do lado
conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De
Gaulle. Ninguém se alinha à sua estatura histórica no lado conservador até agora
neste século.
E qual o evento mais surpreendente do século 21?
É provavelmente a
velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana,
alcançando agora o ponto em que ultrapassar os EUA como "motor do mundo" (como
definem de forma complacente) é considerado factível em apenas alguns anos. Era
previsível há muito tempo que isso iria acontecer tendo em vista o tamanho da
população chinesa e a taxa de crescimento anual de sua economia. Mas muitos
especialistas diziam que isso iria ocorrer daqui a muitas décadas no futuro.
No entanto, seria muito ingênuo imaginar que a China pode permanecer imune à
crise estrutural do sistema do capital, simplesmente porque sue balanço
financeiro é incomparavelmente mais saudável do que o norte-americano. Mesmo o
superávit de trilhões de dólares dos chineses pode evaporar de um dia para outro
no meio de uma turbulência não muito distante no futuro. A crise estrutural, por
sua própria natureza, obrigatoriamente afeta a humanidade como um todo. Nenhum
país pode invocar imunidade a isso, nem mesmo a China.
As crises fazem parte do capitalismo. Qual sua avaliação sobre a que
eclodiu há cinco anos. Quem ganhou e quem perdeu?
Parte do capitalismo?
Sim e não! Sim, no sentido limitado de que a crise eclodiu com intensidade
dramática nos países capitalistas mais poderosos do mundo, que se autodenominam
"capitalistas avançados". Mas muito do seu "avanço" é construído não apenas
sobre privilégios de exploração (no passado e no presente) das suas relações de
poder (políticas e econômicas) em relação ao chamado "Terceiro Mundo", mas
também sobre o catastrófico endividamento de sua realidade econômica.
Escrevi em 1987, num artigo publicado no Brasil em 1987, que o "verdadeiro
problema da dívida" não era - como foi apontado na época - a dívida da América
Latina, mas a dívida insolúvel dos EUA, que está fadada a acabar com uma
colossal quebra, equivalente à magnitude de um terremoto econômico para o mundo
todo. Há dois anos, quando dei minha última palestra no Brasil, apontei que a
dívida dos EUA somava astronômicos 14,5 trilhões de dólares, antecipando seu
inexorável aumento. Hoje nos movemos para os 17 trilhões de dólares, e mais e
mais.
Qualquer um que imaginar que isso é sustentável no futuro, ou que isso não
vai afetar todo o mundo na Terra, quando o processo de crescimento inexorável do
endividamento está fadado a levar para a uma situação paralisante, deve viver
num planeta diferente.
O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
As
tradicionais crises cíclicas/conjunturais costumavam fortalecer o capitalismo no
passado, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria
o que Schumpeter idealmente chamou de "destruição criativa". Os problemas são
muito mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta até dimensão mais
fundamental do controle social metabólico da humanidade, incluindo a natureza de
forma perigosa. Assim, falar de "destruição criativa" nas condições atuais é
totalmente autocomplacente. É muito mais apropriado descrever o que está
acontecendo como uma "produção destrutiva".
A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir
um movimento geral, mais para a esquerda, ou mais para a direita?
Até
agora, mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos dos países
capitalisticamente avançados - e não apenas eles - adotaram políticas que tentam
resolver os problemas através da "austeridade", com cortes reais em salários,
assim como nos padrões de vida já precários daqueles que são geralmente
descritos como os "menos privilegiados".
E a linha de "menor resistência" ajuda na extensão, ou, ao menos, na
tolerância das respostas institucionais conservadoras dominantes para a crise.
Mas é muito duvidoso que essas políticas, que agora tendem a favorecer a
direita, possam produzir soluções duradouras.
Como o sr. previu, a pobreza aumentou nos últimos anos, mesmo em países do
coração do capitalismo. Nos EUA, a desigualdade aumentou. No Reino Unido, há um
movimento para dar comida aos pobres, coisa que não ocorria desde a Segundo
Guerra. O que está errado no capitalismo? É possível que o sistema não possa
mais gerar crescimento suficiente para a humanidade?
Dar cesta básica
para os muito pobres não é o único sinal visível desse aspecto da crise, nem
essa situação está confinada os países capitalisticamente avançados, como o
Reino Unido. Escrevi em "Para Além do Capital" (publicado em inglês em 1995)
sobre a volta dos sopões. Nos últimos dois ou três anos podemos vê-los nas telas
das TVs em escala maior no mais "avançado" (e privilegiado) país: os EUA.
Certamente há algo de profundamente errado - e totalmente insustentável - na
maneira pela qual o crescimento é perseguido sob o capitalismo.
Algumas formas, pela sua natureza cancerosa de crescimento, são proibitivas
mesmo em termos de condições elementares de ecologia sustentável. Porque elas
são manifestações flagrantes de "produção destrutiva". Ao mesmo tempo, tanta
coisa é desperdiçada como "lixo rentável", enquanto incontáveis milhões, agora
mesmo nos mais avançados países capitalisticamente, precisam suportar
dificuldades extremas. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John
Major estava reclamando que neste inverno muitas pessoas no Reino Unido terão
que escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando ainda era
primeiro-ministro, ele disse com máxima autocomplacência: "O socialismo está
morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Precisamos perguntar: o
capitalismo funciona para auem e por quanto tempo?".
A escolha entre comer e se aquecer, que ele é agora forçado a reconhecer, não
é exatamente a prova de quão bem o "capitalismo funciona". Na realidade, o único
crescimento com significado é o que responde à necessidade humana. Crescimento
destrutivo, incluindo o vasto complexo industrial militar - chame-o de
"destruição criativa" - pode demonstrar apenas fracasso. O único crescimento
historicamente sustentável para o futuro é aquele que fornece as mercadorias em
resposta à necessidade humana e os recursos para aqueles que delas necessitam.
A crise ampliou o desemprego e muitas regiões e abalou o Estado de
bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar na Espanha, em
Portugal, na França, na Inglaterra, na Grécia. Nos EUA, o Occupy Wall Street
desapareceu. Qual deve ser o resultado desses movimentos? Há conexão entre eles?
Os partidos de esquerda estão se beneficiando dessas ações ou não?
Em
contraste com a idealização propagandística, o Estado do bem-estar social, na
realidade, foi muito limitado a um punhado de países capitalistas. Mesmo lá foi
construído sobre fundações frágeis. Não poderia ser nunca expandido ao restante
do mundo, apesar da promoção acrítica das teorias do desenvolvimento da
modernização, que sempre estruturadas no quadro contraditório do sistema do
capital. A verdadeira tendência de longo prazo apontava no sentido oposto ao do
idealizado Estado do bem-estar.
A tendência objetivamente identificável foi caracterizada por mim já nos anos
1970 como a "equalização descendente da taxa de exploração diferencial". Isso
inclui as diferenças marcantes nos níveis de ganhos por hora de trabalhadores
para exatamente o mesmo trabalho na mesma corporação transnacional (por exemplo,
nas linhas de montagem da Ford) na "metrópole" em relação aos países
"periféricos".
Essa tendência continua a se aprofundar e ainda está longe da sua necessária
amplitude. Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem
se aprofundar no futuro. Eles surgem nesse arcabouço dessa tendência perversa de
equalização de longo prazo. Compreensivelmente, os partidos que operam no
enquadramento da política parlamentar não podem se beneficiar dos protestos.
Isso porque eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos das
consequências negativas decorrentes do Estado do bem-estar.
Lukács dizia que os sindicatos eram a organização social civil mais
importante. Isso continua valendo?
A visão de Lukács sobre esse ponto era
muito influenciada pelo seu camarada e amigo Jenö Lander, que foi um líder
sindical antes de se tornar liderança do mesmo grupo partidário no qual Lukács
também desempenhou um papel de liderança.
Lukács está certo sobre a contínua importância dos sindicatos, com um
acréscimo importante. Não foi ressaltado suficientemente que a potencialidade
dos sindicatos foi - e continua sendo - afetada de forma muito ruim pela divisão
do movimento da classe trabalhadora organizada entre o chamado "braço
industrial" (sindicatos) e o "braço político" (partidos) do trabalho.
A potencialidade positiva dos sindicatos não acontecerá até que essa divisão
prejudicial, que produz danos para ambos, seja corrigida significativamente. (...)
*István Mészáros é filósofo e está entre os mais importantes intelectuais marxistas da actualidade. Professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, foi também professor de filosofia e ciências sociais na Universidade de York. É ligado à chamada Escola de Budapeste, grupo de filósofos húngaros constituído por antigos discípulos Georg Lukács ou por ele influenciados, e que inclui Ágnes Heller e György Márkus. A Boitempo Editorial publicou no Brasil seus títulos A crise estrutural do capital (2009), A Educação para além do capital(2002),O poder da ideologia(2004) e O século XXI – socialismo ou barbárie? (2003)
Referências: