Joana e Filipe formam um casal bem disposto, de trato afável. Vivem numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, na base de um monte coberto de urze e salpicado por alguns pinheiros raquíticos.
Todos os dias se deslocam para a cidade onde trabalham numa empresa de transformação de carnes. De caminho, levam o seu filho de 6 anos para a Escola mais próxima do seu trabalho, também na cidade. Na aldeia, a escola está para fechar pela falta de alunos. A convivência entre as crianças está muito condicionada, quer pelas escassas experiências proporcionadas aos alunos que frequentam as aulas, uns de cada idade, sem grande convergência de interesses, quer pelo isolamento da própria aldeia em relação ao resto do País.
Durante as férias de Verão, ficaram por ali mesmo, gozando a paz da aldeia, banhando-se, nos dias de calor extremo, no pequeno tanque atrás da casa, apenas sombreado por algumas cerejeiras e pessegueiros. Depois, sentavam-se a conversar e a comer um ou outro fruto colhido directamente das árvores. O pai dizia ser muito agradável depenicar umas quantas cerejas, sentado no ramo da árvore! O pequeno Luís ainda não tinha autorização para subir às árvores, apesar da vontade que tinha de experimentar. Ficava a olhar para o coruto da árvore onde o pai se dedicava a colher as cerejas carnudas. Quando conseguia encontrar pequenos molhinhos de duas ou três cerejas, guardava-as em separado. Depois, era ver os sorrisos rasgados da mãe quando ele em brincadeira lhe oferecia uns espantosos brincos que colocava, a rir, nas suas orelhas pequeninas. Luís nunca se esquecia de olhar para a cestinha das cerejas, à procuras dos vermelhos pingentes, rubis de brincadeira.
As aulas recomeçaram em Setembro. O vaivém entre a aldeia e a cidade recomeçou. Tudo correu bem até ao Natal. As aulas interrompidas, os descansos até mais tarde. O pequeno Luís teve autorização para ficar por casa em alguns dias de frio mais intenso. A sua mãe deixava o almoço pronto, dentro do microondas que o Luís já sabia ligar. Entretinha-se a ler, a ver televisão e a brincar com o seu cão, um pastor alemão castanho, lindíssimo, robusto e, pode dizer-se, muito inteligente. Parecia entender todos os desejos dos donos e prever todos os perigos. Se um estranho se aproximasse de casa, ele postava-se ao portão, qual sentinela, e ai de quem tentasse entrar sem um dos donos vir ordenar que o deixasse passar. Então, largava o seu posto e o convidado podia estar sossegado. Nada lhe aconteceria. O cão aproximava-se da pessoa e permitia-lhe, até, que acariciasse o seu sedoso pelo. Mas, da próxima vez que essa pessoa lá voltasse, o ritual repetia-se. Só à voz dos donos permitia a intrusão de alguém em casa. Era um guarda de respeito.
Nestas férias de Natal o frio foi particularmente intenso. Os termómetros foram baixando, baixando, e a neve começou a cair. Um manto branco espesso cobriu a serra. A visão que se vislumbrava das janelas da pequena casa de Joana e Filipe era espectacular. O pequeno Luís insistia, nos dias em que os pais estavam em casa, para o levarem ao alto da serra. Queria poder escorregar na neve que o deslumbrava de forma apelativa. Os pais respondiam-lhe sempre da mesma forma:
- Filho, está tanto frio! Estamos tão quentinhos cá dentro! Se apanhares muito frio lá fora, podes ficar doente. Já viste como depois seria complicado para nós também? Um teria que ficar em casa contigo, sem trabalhar. Já te esqueceste como a febre te ataca tanto quando ficas com gripe ou com amigdalite? Vamos lá ter juízo e ficar no quentinho para não adoecer, está bem?
Luís não respondia, ficava um pouco amuado. Como todas as crianças, gostava de experimentar tudo.
A neve continuava a cair e os dias arrastavam-se cada vez mais monótonos. O desejo de ir até ao alto da serra e sentir a neve fofa era cada vez maior. O apelo era irresistível.
Luís começou a traçar um plano. Iria sozinho até ao alto da serra.
Um dia de manhã, deixou sair os pais e começou os preparativos. Encontrou, guardadas na despensa, umas botas de borracha do pai. Eram grandes, mas serviriam para levar, já que não tinha nenhumas suas. Calçou dois pares de meias grossas para as botas não ficarem tão largas, vestiu umas calças quentes, camisolas de lã e um casaco com capuz, bem quente também, um gorro e luvas de lã. Completou a indumentária com um cachecol e resolveu-se a sair.
O ar frio da manhã provocou-lhe lágrimas nos olhos. Estava deveras frio! Mas não iria desistir. Forçosamente iria até ao alto da serra deslizar na neve. O pastor alemão ganiu fortemente quando se apercebeu das intenções do rapaz. Teimosamente, ignorou os apelos do animal que desatou a latir furiosamente tentando impedi-lo de sair de casa. De nada valeram as tentativas do fiel cão. Luís partiu à aventura. Logo que saiu do portão, o pastor alemão percebeu que só lhe restava seguir a criança e velar por ela.
Serra acima, Luís fazia pequenas bolas de neve que jogava ao seu companheiro de viagem. Brincaram muito, divertiram-se durante umas boas horas. Quando chegaram ao cume, Luís estendeu o plástico que levara consigo, sentou-se nele e começou a escorregar ladeira abaixo. Em todas as suas descidas e subidas o cão acompanhou-o sempre. Até se divertiu bastante. O dia ia decorrendo divertido, mas as horas passavam.
O cão começou a mostrar-se inquieto. Seria o passar das horas, seria o cansaço, ou seria alguma outra coisa? Começou com um ganido lancinante que ameaçava não terminar. Luís aproximou-se do animal e acariciou-o, tentando acalmá-lo. Debalde lhe falou em tom carinhoso e o amansou. O animal continuou a rondar a criança, a tentar arrastá-lo a caminho de casa. De nada serviu. Queria continuar a sua brincadeira. Teimou em ficar e ficou.
A neve recomeçou a cair, branca e fofa, perigosamente fria. Luís ignorou-a. Continuou a descer a ladeira sentado no seu plástico, divertido demais para parar. O cão continuou com a sua preocupação. Seguiu-o. A diversão terminou rapidamente. A criança, deslizando a grande velocidade, embateu num resto de tronco caído no chão, encoberto pela neve. Saiu do plástico aos tombos, monte abaixo. Perdeu o controle, já não sabia quantas cambalhotas tinha dado. Foi quando o pior aconteceu. Bateu com a cabeça num penedo e o sangue rojou de um feio golpe. Parou inanimado.
O inteligente animal apercebeu-se, de imediato, da situação perigosa em que tinha caído a criança. Correu desorientado ladeira abaixo, ao encontro do pequeno Luís que continuava sem dar acordo de si, de bruços, com a boca encostada à neve. Agarrou-lhe suavemente pela gola do casaco e voltou-o para cima. A criança respirava com alguma dificuldade e o cão lambeu-lhe suavemente o rosto, tentando reanimá-lo. O tempo continuou no seu lento caminhar. O Sol continuava escondido. Apenas a neve mantinha o seu bailado trágico. Da sua brancura nascia um abraço de morte que ameaçava cobrir o pequeno Luís.
As horas passavam e não aparecia vivalma para salvar a criança. Ninguém tinha dado pela sua falta, ainda. Decorreriam umas horas até Joana e Filipe regressarem a casa e suspeitarem do sucedido. O cão latia furiosamente, talvez na ânsia de ser ouvido na aldeia. Por fim, os seus latidos tornaram-se uivos. Mesmo assim, ninguém apareceu. Todos os habitantes, e eram poucos, estavam a trabalhar na cidade ou, aqueles que trabalhavam os campos, mantinham-se à lareira, dentro de suas casas, abrigados do frio que se fazia sentir cá fora.
O cão percebeu que seria inútil continuar a tentar chamar a atenção de quem quer que fosse. Não havia um fôlego vivo, além deles os dois. E talvez daí a pouco, só restasse um. A criança inanimada não conseguiria sobreviver ao frio, exposta daquela forma.
Mais uma vez, o inteligente animal limpou a neve que cobria de novo a pálida face da criança. Olhou o céu e viu que a noite ainda tardava e a neve não parecia querer parar. Com extremo cuidado, deitou-se em cima do corpo da criança, encostou a sua grande cabeça à pele gelada do rosto do menino e preparou-se para esperar.
O tempo passou, as horas pareciam ter a duração de dias, ninguém apareceu. Enfim, a noite abateu-se sobre a terra. Ao longe, as luzes das casas iam acendendo. O animal parecia resistir ao frio, mas não por muito mais tempo. As suas patas cobertas pela neve que ele parecia ter dificuldade já em sacudir de si começavam a gelar e a criança continuava inconsciente.
...
Na pequena casa de Luís, os pais entram e vão ao quarto da criança, estranhando a sua falta na sala onde se costumava entreter com a televisão e o amigo pastor alemão. Não o encontram e ficam desesperados. Chamam pelo filho, gritam pelo cão, mas ninguém responde. A angústia entra nos seus corações.
Subitamente, a mãe lembra-se do pedido insistente do filho. Quando resolvem ir procurá-lo e procuram as botas de borracha na despensa, o pai dá pela falta das suas. A desconfiança torna-se certeza. Daí até deduzirem que o cão tinha acompanhado a criança foi um instante. Correm para o exterior, sobem a ladeira, esfalfam-se monte acima, gritando os nomes do filho e do cão.
...
Não havia resposta. Era estranho. Pelo menos o cão devia responder ao chamado. Era um animal com ouvido atento que costumava responder ao chamamento dos donos. Começaram a perceber que algo de errado tinha sucedido.
Desesperados, os pais começaram a perscrutar cada palmo de chão com os seus olhares atentos e as lanternas que levavam consigo. O tempo passava e não encontravam nada. Estavam já a meio da encosta quando um vulto acastanhado, meio coberto pela neve, lhes chamou a atenção. Correram para o local e viram confirmados os seus receios. Deitados na neve, encontravam-se a criança e, por cima dela, o cão. Nenhum dava mostras de vida. Não havia qualquer movimento nos corpos inanimados.
Os gritos dos pobres pais ecoaram pelo monte. Afastaram o pobre animal que ainda mantinha algum flexibilidade muscular, mas estava claramente morto. Olharam estarrecidos o seu querido filho, aproximaram as mãos do seu rosto e verificaram que se mantinha quente. Verificaram que respirava. Estava vivo. Na sua cabeça, o sangue estancara com o frio, mas não respondia a qualquer chamamento.
Era urgente reagir. O pai levantou o filho nos braços, apertou-o contra si e desceu o monte com ele bem apertada ao peito. O cão ficou para trás. Nada havia a fazer. A criança foi levada ao hospital onde se manteve em estado de coma durante 10 dias. Tinha sofrido um traumatismo craniano que lhe afectara parte do cérebro. O frio que tinha suportado agravara a situação.
Quando acordou do coma, Luís quis saber do seu fiel amigo. Os pais tiveram de lhe explicar que o pobre animal tinha sido transportado para o jardim de sua casa, onde foi enterrado, e que a sua morte tinha sido uma prova de amor. Luís jamais poderia ter-se mantido vivo sem o calor do corpo do animal. O seu amigo morrera para lhe manter a vida, aquecendo-o, imóvel. Seria uma história de amor que ele jamais esqueceria
( MARIA GORETI ANDRADE DIAS)
19 dezembro 2006
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6 comentários:
Caro Margaride,
obrigado por nos trazer esta bela história da Goreti Dias.
Uma prova de uma verdadeira amizade dada por um animal,que simplesmente é tão mal tratado neste mundo,pelo homem,
A amizade dos nossos amigos de quaro patas é inquestionável e estou a lembrar-me do seu artigo que tanta polémica causou aqui na voz-os amigos da onça,sim os cães não são amigos da onça!
Belo!
Por outro lado transporta-nos para o isolamento cada vez maior das nossas belas aldeias do interior que sofrem a erosão dos tempos de desertificação pelo magnetismo inebriante das cidades!
Um abraço
Mário Relvas
Amigo Relvas. A Goreti Dias, é uma amiga de longa data, e uma excelente escritora e poetisa. Amadora, tal como eu, mas sem dúvida, uma mulher de um enorme talento.
Um abraço amigo.
Mário Margarde.
OB: Ela acaba de criar um blog de poesia. Visitem esse blog, embora só lá tenha postado um poema, vale a pena visita-lo.
Aqui fica o endereço: PoesiaMGD http://poesiamgd.blogspot.com/
Olá MMargaride. Gostei é um excelente texto da Goreti! Há muitos casos de cães que deram a vida pelos donos. Esta, será mais uma história, veridica ou não, mas decerto com base no real.
A narrativa, está excelente pois no nosso imaginário, conseguimos visualizar e praticamente sentir todo o quadro de envolvimento espacial e até sentir o frio que faria!
A grande lição, será a do amor dos animais, neste caso o cão, sobretudo a lealdade do animal, deu a sua vida pela do pequeno dono. Em contraposição, está o animal homem, que friamente é capaz das maiores barbaridades, para com os animais.
Um grande abraço.
PS: Quando é que a Goreti, começa a escrever aqui no blogue? Se precisar de uma ajudinha, a melhor altura será agora, que estarei um pouco mais liberto.
Amigo, um pormenor que me tinha esquecido. Utilizem a página de textos para publicar um texto como este. Temos o textos a Voz do Povo, foi criado nesse sentido.
Como já expliquei anteriormente, o ínicio do texto na página principal e faz-se um link para o textos, onde colocamos o texto na íntegra.
Um abraço
Obrigado amigo Simões. Mas a Goreti, é um pouco avessa aos blogs. Mas já consegui convence-la a criar o dela. Agora vou ver, se ela quer ou não postar aqui. Vou falar com ela a ver se a convenço.
Quanto ao postar este conto, nos textos. Não teria a divulgação imediata que tem neste. Foi essa a razão!
Ela pediu-me para postar aqui, precisamente pelo impacto que poderá ter.
Se não fosse um conto...postaria no textos. Como é um conto...achei que deveria postar aqui.
Um abraço
Mário Margaride
MMargaride e fez muito bem, é um bom começo, depois do bichinho pegar a Goreti, não passará sem escrever... vejam o nosso João Soares, depois de entrar, já pegou o bicho e mais criou o proprio blogue! O que para mim é uma enorme satisfação, irei um dia destes apresentar aqui um trblho sobre os blogues!
Um grande abraço
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